FOGUEIRA DE SÃO JOÃO: Uma tradição na contramão da ecologia

Chegamos ao ano de 2014 d.C. com uma seca em todo semiárido do Brasil. Com diversas questões e problemas ambientais (mudanças no Código Florestal, expansão do desmatamento e da monocultura, empobrecimento dos solos, pecuária intensiva, deslizamentos de terra, inundações, chuvas torrenciais, queimadas, dengue, maior consumidor de agrotóxicos no mundo, dentre diversos outros) e no mundo (tsunamis, terremotos no Haiti, no Japão, na Espanha, na Nova Guiné, na Costa Rita, no México, furacões, tornados, vazamento de petróleo no Golfo do México, vazamento radiativo na Usina Radiativa de Fukushima no Japão, vazamento de cianureto na Turquia, dentre diversos outros). Como consequência, segundo informação do secretário-geral da Federação Internacional da Cruz Vermelha, Bekele Geleta, “as catástrofes naturais atingiram mais de 30 milhões de pessoas em todo o mundo em 2010”.
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Neste artigo, quero apenas me deter sobre as fogueiras, que são queimadas nas festas de São João, e os problemas delas advindas: desertificação do semiárido, assoreamento dos rios, problemas respiratórios, dentre outros. As fogueiras poderiam ser simbolizadas, assim como atualmente são os pinheiros como “árvores de Natal”, não sendo necessário cortar milhares de delas para enfeitá-las nas celebrações do Natal. Várias cidades do mundo já têm legislação e regulamentos sobre fogueiras e as queimadas, visando estabelecer regras claras para esclarecimento em geral, mas também para a criação de condições de segurança de todos.
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A região semiárida é a mais populosa do mundo com uma população de 28 milhões de pessoas. No bioma Caatinga, o único exclusivamente brasileiro, o grande desafio é promover o desenvolvimento da região com a proteção do meio ambiente. A perda progressiva da cobertura vegetal do semiárido brasileiro, causada por fatores naturais e principalmente antrópicos, como desmatamentos desordenados e impunes, vem gerando e/ou agravando uma série de problemas socioambientais na região, como a diminuição da biodiversidade da caatinga e a intensificação do processo de desertificação.
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O impacto causado pelo uso indiscriminado da vegetação nativa para fazer a fogueira de São João é extremamente preocupante, pois colabora, sobremaneira, para a devastação e, consequentemente, para a desertificação do semiárido, sem mencionar o volume de lenha utilizado diariamente para alimentar os fornos de nossas padarias, aquecerem os fornos das nossas indústrias e de praticas errôneas de agricultura como a coivara (a queima para plantio!).
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O solo vai perdendo a cobertura fértil e, aos poucos, torna-se estéril, com graves riscos de erosão, o que potencializa a lixiviação dos rios, proporcionando o assoreamento dos corpos d’água. Sem a cobertura vegetal, tira-se a possibilidade da infiltração da água no solo para alimentar nosso lençol freático e dar a umidade necessária ao solo, favorecendo que as sementes germinem. Essas práticas têm favorecido para tornar estas regiões do semiárido em regiões desérticas.
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A desertificação ocorre em mais de 100 países do mundo. Observe que contrassenso: no dia 17 de junho é comemorado o Dia Mundial de Combate à Desertificação e à Seca e não presenciamos a comunidade se mobilizar para plantar árvores no semiárido, principalmente árvores nativas, ou em qualquer outro lugar que seja. Entretanto, após apenas uma semana, no dia 24 de junho “homenageamos” São João com a queima de milhares fogueiras, milhares de metros cúbicos de madeira. São as fogueiras “juninas”, de diversos tamanhos, espalhadas pelo país, especialmente no Nordeste do Brasil, e não é só isto, acende-se fogueiras também no dia de Santo Antônio (12 e 13 de junho), no dia de São José (18 e 19 março) e no dia de Sant`Ana (em julho).
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Há vários anos escrevo artigos que possibilitem aos leitores a questionar, a meditar (ou ajudar a desqualificar!) sobre o uso/costume/tradição de fazer fogueiras em época junina. Para algumas pessoas existem justificativas: a religiosa, a celebração da fartura e a de usos, costumes e tradições. Sem querer ser o dono da verdade, tento apenas sensibilizar, brasileiros e brasileiras, particularmente aos que moram no semiárido, de mais este grave problema ambiental, repassando dados e experiências dos mais de trinta anos de trabalhos ambientais que possuo.
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Para os católicos, justificação da fogueira (o maior símbolo das comemorações juninas) tem sua origem em um acordo feito pelas primas Isabel (mãe de São João Batista) e Maria (Nossa Senhora, mãe de Jesus Cristo), que estavam grávidas e moravam distantes. O acordo seria que Isabel mandaria acender uma fogueira no alto do monte para avisar a Maria do nascimento de João Batista e com isto poder ter o auxílio pós-parto. Consta que Santa Isabel cumpriu a promessa. Atualmente, a grande maioria da população, particularmente a nordestina, desconhece hoje as razões e/ou os motivos que os levam a acenderem as fogueiras na época de São João, ou festas juninas, como queiram.
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Porém, observa-se nesta passagem acima, que naquela época do dos nascimentos de João Batista e Jesus Cristo, a fogueira serviu como “meio de comunicação” entre as primas. Se o acordo fosse realizado hoje, com o avanço da tecnologia de comunicação que temos, Isabel teria telefonado (até mesmo de um telefone celular!!!), ou mandaria um torpedo pelo celular, ou enviaria um e-mail, ou criaria um álbum de fotos no Facebook ou no Orkut sobre o acontecimento, ou até mesmo passaria as imagens do pequeno João Batista pelo MSN. Percebe-se que Isabel teria diversas opções de comunicar a Maria o nascimento de João Batista, relativando-se as condições financeiras de ambas, é claro!
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Ao citar os fatos acima, desejo somente ajudar a desmistificar a “justificativa” de “homenagear” São João (Batista), pois o fato de usar o “meio de comunicação” utilizado por Isabel para transmitir o nascimento do rebento para Maria se traduz como um processo arcaico e ultrapassado, principalmente com relação às questões ambientais, com tantos problemas como o aquecimento global, mudanças climáticas, devastação das florestas, crescimento demográfico da população, poluição dos rios, extinção de animais, doenças endêmicas, dentre outros. Este é um dos fatores que justificam apagar as fogueiras nas épocas das festividades juninas.
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São 1.482 municípios que localizam-se em área suscetível à desertificação em nove Estados (Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e norte de Minas Gerais), de acordo com o Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca - PAN, ligado Ministério do Meio Ambiente. Essa área responde por 15,7% do território brasileiro, onde moram 31,6 milhões de pessoas (19% da população do país). Entre as principais causas do avanço da desertificação no país estão o extrativismo, o desmatamento desordenado, as queimadas e uso intensivo do solo na agricultura. No entanto, o Programa de Combate à Desertificação (PAN), principal instrumento do governo federal ligado diretamente ao problema, sofre com a falta de recursos. Nos três anos (2004, 2005, 2006), o Ministério do Meio Ambiente (MMA) aplicou no programa apenas R$ 3,5 milhões dos R$ 10,4 milhões autorizados em orçamento.
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Maioria dos cientistas e estudiosos enquadram as regiões semiáridas, as que têm menos de 650mm de precipitação de chuvas anuais, e as regiões áridas, menos ou inferior a 500mm. Nos dois casos, as precipitações se apresentarão concentradas em uma estação do ano, com grande variedade. Sem comentar as freqüentes secas e também os impactos como o fenômeno El Niño.
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A Paraíba é a região mais propensa ao processo de desertificação, principalmente onde os solos são utilizados de maneira irracional. A desertificação atinge cerca de 27.750 Km² (49,2%), abrangendo 68 municípios, e tem 70% de seu território no semiárido.
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Grande parte da região semiárida do Brasil encontra-se numa situação de marginalidade, inferioridade ou de dependência em relação ao centro de gravidade político-econômico, persiste com um sistema de baixo valor produtivo, com severos desequilíbrios regionais, atraso tecnológico, dentre outros problemas e mazelas. Os processos de desertificação são muitos dinâmicos e geram maior impacto nas regiões semiáridas e áridas, por suas naturezas, mais frágeis e instáveis do que as regiões úmidas e temperadas. Um dado importante é que nas áreas desertificadas torna-se impossível a recuperação dessas terras.
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As causas desse processo de desertificação são variadas: o homem é o principal fator desencadeador dos processos de degradação e deterioração dos recursos renováveis, na ânsia de satisfazer crescentes necessidades (ou tradições como a fogueira!); o homem faz cada vez mais pressão sobre a natureza, muitas vezes com critérios equivocados ou tecnologias erradas, ignorando alterações ecológicas sérias, com implicações não somente no meio ambiente, como também no social, econômico e político, segundo Souza Filho e Moura, 2006.
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Dentre as principais causas de desertificação nas regiões semiáridas, inclusive na Paraíba, podem-se mencionar: a retirada irracional da vegetação nativa, o sobrepastoreio, práticas equivocadas de irrigação e a utilização do fogo para desenvolver atividades agropecuárias. À medida que o processo de desertificação avança, a vegetação se deteriora, o pastoreio se degrada, aumenta a proporção de solos danificados, ocorre maior erosão e desequilibra a fauna e o meio ambiente.
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São vários os argumentos para apagar as fogueiras. O primeiro a ser citado refere-se ao impacto do crescimento demográfico. Vejamos um comparativo em pouco mais de cem anos. Em 1900, a cidade de Campina Grande havia pouco mais de 20.000 habitantes e a Paraíba quase 500.000 habitantes. Hoje, a cidade tem 385.276 habitantes e o estado tem 3.766.834 habitantes, dados do censo do IBGE de 2010. Vamos supor que apenas 20% da população de Campina Grande tenham o costume de fazer fogueiras, em 1900 seriam 4.000 fogueiras e, hoje, em 2011, seriam 77.055 fogueiras. Se calcularmos o Estado da Paraíba, em 1900 seriam 100.000 fogueiras e hoje, em 2011, seriam 753.367 fogueiras. Sem comentar que não existiu nestes mais de cem anos qualquer projeto de reflorestamento da cobertura vegetal da caatinga com espécies nativas.
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Outro argumento, para apagar as fogueiras, refere-se ao impacto na saúde da população com “problemas respiratórios” e queimaduras. Segundo dados do IBGE, no ano de 1999, o valor custeado das hospitalizações paga pelo SUS com doenças do aparelho respiratório no Brasil foi de R$612.581.691,00, só no Estado da Paraíba foi gasto R$15.590.573,00. Note-se que o valor ainda é maior, pois não entraram neste somatório os gastos dos planos privados e gastos particulares, nem com problemas de queimaduras causadas pelas fogueiras!
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Outro argumento fortíssimo para apagar as fogueiras, é o fato de que está intimamente ligada à temática da Campanha da Fraternidade 2011: Fraternidade e a Vida no Planeta. Seu Lema é "A Criação Geme em Dores de parto" (Rm 8,22). Vida, por sinal, já foi o tema de várias campanhas da CNBB: Reconstruir a vida (1974), Fraternidade e vida (1984); também aparece em lemas: Para que todos tenham vida (1984), A serviço da vida e da esperança (1998), Vida sim, drogas não (2001), Vida, dignidade e esperança (2003), Água, fonte de vida (2004) e Vida e missão neste chão (2007) “Fraternidade e Defesa da Vida” (2008), e o lema “Escolhe, pois, a vida”. O que será dos que nasceram e moram no semiárido nordestino, nossas irmãs e de nossos irmãos, se todos nós não ajudarmos com ações e gestos que possam preservar a região dando-lhes oportunidade de vidas dignas?
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Desde 2011, o Nordeste do Brasil passa por mais um severo período de estiagem, onde rapidamente seus açudes e barreiros começam a ficarem com níveis críticos. Será que nós, população do semiárido, devemos nos alegrar e confiar quando os açudes e barreiros estão realmente “cheios”? Acredito, com quase certeza, que não! Pois, com o processo de desertificação acelerado e principalmente com a retirada há vários anos das matas ciliares, que protegiam nossos rios e reservatórios, há um grave processo de assoreamento, com um grande volume de areia que são carreadas pelas águas das chuvas para os reservatórios, comprometendo a capacidade de armazenamento destes.
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Agora cabe a você, minha irmã e meu irmão, perceber se vale a pena continuar com esta “tradição” de acender a fogueira para “homenagear” São João. Rezo para que Deus e nosso Senhor Jesus Cristo toque em seu coração, dos seus familiares, amigas e amigos, e os faça apagar esta “tradição” que só empobrece a cobertura vegetal e fragiliza ainda mais a nossa região, nossa economia e afeta a saúde de milhares de pessoas, colocando em cheque o futuro da região semiárida nordestina, que se transformará num imenso deserto, se nada for feito.
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Lembremos do alerta feito no início de 2007, pelo Painel Intergovernamental de Mudança Climática (IPCC, sigla em inglês) da Organização das Nações Unidas (ONU), de que o semiárido brasileiro corre o risco de se transformar em semideserto nos próximos 60 anos, o que provocaria a migração dos moradores para outras áreas do país, causando um caos social, a região ainda carece de recursos governamentais. Essa previsão é feita por especialistas em políticas para o semiárido e por ambientalistas. Por que não propor as nossas irmãs e aos nossos irmãos que em vez de acender uma fogueira, plante e cuide de uma árvore nativa em homenagem a São João. ISTO DEPENDE DE VOCÊ, DEPENDE DE NÓS!
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* O autor é carinhosamente conhecido por RAMIRO PINTO, filho de Seu Gercino e Dona Joriéte, irmão de Fred Ozanan, Gercino Filho, Jógerson e Jordânio, espôso de Mary Roberta e pai de Matheus, Rafael e Ramiro, missionário da igreja católica, ambientalista, nordestino, administrador, doutorando em Recursos Naturais, mestre em Engenharia de Produção, especialista em Inovação e Difusão Tecnológica, Analista da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - EMBRAPA.

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